sáb 02 abr 22H00

5€ | 3,5€ C/DESC. HABITUAIS

PASSE GERAL 100CENAS | 15€ | 12€ C/DESC. HABITUAIS

PASSE 3 ESPECTÁCULOS 100CENAS | 12€ | 9€ C/DESC. HABITUAIS

1974

TEATRO MERIDIONAL | TNDMII | MÚSICA DE JOSÉ MÁRIO BRANCO
100CENAS - MOSTRA DE ARTES PERFORMATIVAS
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Criação: Teatro Meridional
Encenação: Miguel Seabra
Com: Carla Galvão, Cláudia Andrade, David Pereira Bastos, Emanuel Arada, Filipe Costa, Inês Lua, Inês Mariana Moitas, Miguel Damião, João Melo, Rui M. Silva e Susana Madeira
Assistência artística: Jean Paul Bucchieri
Dramaturgia: Francisco Luís Parreira
Espaço cénico e figurinos: Marta Carreiras
Desenho de luz: Miguel Seabra
Música original e sonoplastia: José Mário Branco
Fotografia: Susana Paiva
Co-produção: TNDM II e Teatro Meridional

1974 tem como objecto temático a identidade portuguesa, cruzando três períodos da história de Portugal: Ditadura, Revolução de Abril e a entrada na comunidade económica europeia, hoje Unidade europeia, reflectindo ainda a nossa contemporaneidade.
Inscrito na lógica de construção cénica e artística dos espectáculos do Teatro Meridional, Para Além do Tejo (2004) e Por Detrás dos Montes (2006), o espectáculo 1974 alia à linguagem cénica, essencialmente não verbal, construída através da fisicalidade do actor, a linguagem musical, com criação de José Mário Branco.
Onze actores percorrem o tempo de um país, inscrevendo no espaço teatral fragmentos de situações ou instantes impressivos que, partindo do real, são retrabalhados numa linguagem que pretende ultrapassar a mimesis ou a ilustração, tendo-se escolhido um ponto de vista sensorial, mas simultaneamente forte e impressivo para dizermos de nós identitariamente, nesta travessia pela história.
Partindo-se de improvisações temáticas, objectivas e factuais, traçadas como mapa de caminho, potencia-se formalmente cada segmento do espectáculo, conferindo-lhe dimensões diversas que vão do adensamento da poética à subtileza do humor, que nos permitirá rir da nossa particular idiossincrasia. Não se pretende contar a vida de um país, mas pequenas fábulas sucessivas em que os actores vão sendo vários e múltiplos, em que as cenas se desenrolam numa espiral que não é explicativa, mas esboços e borrões abstractos de comportamentos sentidos no corpo dos actores e concretizados em cena.
Tanto a música como o espaço cenográfico em permanente mutação são ambos cenários desta concentração de tempo, enviando sinais que afirmam, complementam e potenciam a cena ou a distorcem para a perturbar.
Inserido numa das linhas de trabalho do Teatro Meridional em que a narrativa cénica assenta no acto teatral da expressão física, emocional e intencional do trabalho do actor e onde a palavra ou está ausente ou não é o seu principal recurso de comunicação, este será o sétimo espectáculo da Companhia que trabalha esta linguagem cénica e o terceiro espectáculo que tem como objecto temático a identidade portuguesa.
Sempre que um homem sonha, o mundo pula e avança?
No dia 25 de Abril de 1974, tinha 9 anos. Uma das memórias vivas que mantenho do tempo da ditadura é a das viagens a Badajoz. Um quilómetro antes da fronteira, invariavelmente, meus pais pediam silêncio total e absoluto. Porquê? “Depois já podemos falar...”. Depois explicavam, ou tentavam inteligentemente explicar, o que hoje entendo ser inexplicável. E eu ficava com a imagem de que as coisas eram como eram e que dificilmente podiam ser de outra maneira, mas que para serem de outra maneira eu teria que, respeitando sempre a identidade do próximo, nunca deixar de pensar pela minha própria cabeça, ou seja de sonhar.
Assumido o desafio lançado pelo Diogo Infante, director do Teatro Nacional D. Maria II, meu amigo e companheiro geracional, para conceber um espectáculo que, à semelhança de outros realizados anteriormente pelo Teatro Meridional, se detivesse sobre a identidade portuguesa, várias questões se me colocaram.
Como falar de um país inteiro, da sua história e da sua identidade, quando nós próprios nem sempre conseguimos determinar quem somos? E o que é que permanece de realmente identitário independentemente do contexto social, familiar e de formação de cada um de nós? E hoje, num mundo globalizado em constante mutação, o que permanece realmente português? E como definir o que se escolhe contar da História portuguesa neste grande período que atravessa várias décadas e que vai do Fascismo até à actualidade?
Como criador e coordenador de uma equipa que gere as várias disciplinas de criação, como conseguir provocar-me e provocar teatralmente, questionar modos do fazer teatral, como encontrar uma linguagem comum que nos sintonize enquanto criadores na narrativa do espectáculo e em cada tempo do tempo da narrativa da História?
Procurei um conjunto de criadores que, pelo seu percurso e pela admiração artística que por eles nutro, me ajudassem a questionar pressupostos de trabalho e contribuíssem para um olhar renovado sobre o processo da criação teatral, sabendo que construir este tipo de espectáculo é ter consciente que todas as possibilidades do espectáculo são possíveis de sonhar, de recriar, de ligar, de enunciar e de dizer - teatral, social, humana e politicamente - e que este imenso espaço de liberdade cria paradoxalmente um grande constrangimento.
Procurámos que a construção deste espectáculo tivesse a realidade como inspiração, mas que não fosse a ilustração de nenhum acontecimento e, mais do que mostrar o que foi ou como era, ou como é agora, quisemos descobrir o que se sentia, e o que o sentir dos outros nos provoca - mantendo sempre um pé na realidade e outro no teatro.
Como criador, o que mais admiro e gosto de ver num espectáculo é uma mesma linguagem que atravesse todos os criadores na sua manifestação artística específica. Que ela seja coerente ao nível dos códigos de comunicação, que cada projecto tenha uma identidade própria e que a sua singularidade seja identificável, reconhecida e partilhada pelas pessoas que o fazem.
Sonhar é ir além do que é real, e o espectáculo “1974” é uma fábula sobre a efemeridade da utopia, a história de uma bonita oportunidade e sobre o que dela fizémos, ou ainda não conseguimos fazer.
Já vivi o tempo suficiente para acreditar que sim, que o mundo avança quando reivindicamos o direito de sonhar e sonhamos as utopias, que são o subsolo ou um céu qualquer que queremos possível. E acredito também que a contaminação não se faz só com surtos de gripes ou de economias de fracasso. O que é bom contamina-nos, o que é belo também. E é por acreditar nisso que persisto, que enquanto colectivo persistimos.
Pelo sonho é que vamos?
Miguel Seabra
1974: preencha os espaços em branco
1. O presente espectáculo pronuncia-se sobre as consequências de uma história. As consequências podem ser: as que a História retira de si mesma e que nós sentimos sob a forma de actualidade; as que nós gostaríamos de retirar da História, de modo, precisamente, a modificar o presente e a acelerarmos novas consequências (porque o presente talvez nos desagrade).
O título “1974” é já um indicador suficiente da história de que se trata. Porém, esse título não significa que os acontecimentos decisivos daquele ano constituam o manancial exclusivo, ou até predominante, do espectáculo. Um palco nunca é o melhor ambiente para este tipo de datas e acontecimentos. O próprio dos palcos é estarem, por assim dizer, aptos a todos os preenchimentos, à semelhança de uma incógnita matemática a resolver na equação ficcional. Datas como a de 1974, em contrapartida, arrastam consigo uma tal sobre-determinação de significado que toda a sua transferência ficcional se encontra, logo à partida, indiciada por corrupção. Arrancar a História a si mesma, preservá-la na sua condição e projectá-la ilustrativamente no domínio da representação teatral, seria sempre a confissão de uma insuficiência do teatro. Em particular, seria reduzir os meios teatrais à condição da triste fotografia que persiste na moldura velha: ali está ela, obrigada à grande mentira de ter de ser verdadeira.
Embora o título “1974” não tenha assim valor referencial directo, ele exprime, no entanto, o compromisso que, desde o início, orientou o entendimento criativo do espectáculo e o modo como, ainda que sub speciae fabula, se quis abertamente exposto a um tema regulador: o da História contemporânea portuguesa. O ano de 1974, na sua singularidade, tem o valor de um promontório. Quer dizer: assiste-lhe um poder concentrador das linhas determinantes daquela História; é a partir dele, por conseguinte, que, projectando-se para o passado e para o futuro, nos seus modos de continuidade ou de ruptura, essas linhas são apreensíveis no seu significado.
2. Essa apreensão é naturalmente o produto de um trabalho interpretativo. O meu contributo para o “1974” consistiu essencialmente na redacção de um texto, de latitude a um tempo dramatúrgica e historiográfica, que correspondia a esse trabalho e de que o espectáculo recolhe algumas das suas percepções orientadoras. Tal trabalho não desejou rivalizar ou confundir-se com o trabalho do historiador. Nesse particular, as noções de objectividade e de prova a que o historiador confia o seu labor ser-nos-iam de pouco proveito. Tentou-se antes recolher os últimos oitenta anos de História portuguesa sob o ponto de vista da sua abertura dramatúrgica. Apurou-se assim um número de categorias (ou estruturas simbólicas) não apenas capazes de recolher o que na História portuguesa recente — e também naquilo que se apresenta como dado imediato da experiência — se encontra em estado de dispersão, mas também de revelar o que nessa História e nessa experiência se mostra em condição de envio ao destino teatral. Por exemplo, circunstâncias históricas como as da clandestinidade e da censura, que associamos ao salazarismo, recolhemos nós sob a (convencionada) categoria dramatúrgica do segredo. A forma de operacionalizar teatralmente esta e as outras categorias apuradas (e também a experiência que elas recolhem) consistiu em traduzi-las num conjunto de perguntas aptas a aplicação cénica (por exemplo: “onde se guarda aquilo que desaparece?”) e em atribuir à própria cena, em situação de ensaio, a faculdade de lhes responder. Não constitui uma extraordinária revelação se disser aqui que todo o êxito ou inêxito da arte se mede, em parte, pela qualidade da pergunta que a põe em movimento. Também não será uma extraordinária revelação se mencionar que o centro dessa resposta, no trabalho do Meridional, é sempre o actor; e que a forma da sua resposta — contínua, reelaborada, aberta a todos os reenvios — é a improvisação.
3. Na liberdade permitida pela improvisação e pelo trabalho criativo em geral não há qualquer tentativa de suspender ou negar a objectividade. Falar da História não é apenas um privilégio exorbitante para quem, através do teatro, engendra a vida e de alguma forma a reparte. É também uma responsabilidade tremenda que não pode compadecer-se com faltas à objectividade. Mas todo o existir da História é o existir de uma narração: de uns para outros, quase sempre imposta. Porque o seu fundo é sempre o intolerável, porque nela está sempre em causa o intolerável da experiência, sempre esconde a História mais do que revela. Isto significa o seguinte: que a todo o momento a História aspira à condição de mito. E contá-la, como historiador ou como dramaturgo, é sempre revelar no modo da ficção aquilo que de facto, e desde sempre, já o é. Mas o teatro é talvez mais consciente desta condição especial da objectividade histórica: há mais de dois mil anos que lhe chama tragédia ou comédia.
A este respeito, não será talvez inútil relembrar o modo, talvez definitivo, como certo grego, num texto de influência milenar, captou a relação entre o teatro (isto é, a poiesis cénica) e a História. Assinalou Aristóteles, com efeito, que enquanto o historiador se ocupa com o que Alcibíades disse ou fez, o poeta cénico atribui a Alcibíades as acções e palavras que lhe cabem por natureza ou por verosimilhança. O palco não se ocupa com as coisas que são ou que foram. O seu papel é tomar conta do possível, quer dizer, salvar para o mundo da visibilidade, na forma de acções, aquela verdade necessária do seu assunto que a História (que é sempre uma pequena parte do drama) não chegou a conter. Não chegou, mas podia — e, enquanto não o faz, persiste a arte como o vigorar desse possível. Quem diz Alcibíades pode dizer Hamlet, por exemplo. Sabemos que um certo príncipe Amelothi povoou a historiografia medieval dinamarquesa. Mas a sua personalidade universal — quer dizer: o seu possível, o que lhe cabia por necessidade e verosimilhança — só no palco renascentista, e já sob o nome de Hamlet, é que pode ser revelado.
4. É sempre na elaboração do possível que se envolve a relação mais autêntica ao presente. Olhar para o passado e pretender retirar conclusões é sempre um acto melancólico: de bom grado o confesso. O passado nunca foi mais do que o insuportável dos outros, o insuportável que os fez falar e agir. Mas o presente é o insuportável que nos faz falar a nós — e aqui não há olhar retrospectivo nem melancolia que nos possa valer. Mas é necessário que esse presente viva ainda em unidade, que também ele se recolha nas categorias que dão inteligibilidade ao passado nacional. A descoberta dessa unidade, ainda que ela se afirme em formas por vezes surpreendentes, e enquanto interpretação autêntica, tem de sustentar-se em categorias capazes, não apenas de fazerem prova de permanência, mas de reaproximarem factos e percepções que, na aparência histórica, surgem como desconexos, descontínuos e, às vezes, insignificantes, surpreendendo neles os laços de necessidade e verosimilhança de que a História é precisamente o processo de encobrimento. Isto seria válido não apenas para o interior de cada um dos períodos convencionados — Estado Novo, 25 de Abril, integração europeia e “normalidade democrática” —, mas também para aquilo que os aproxima ou identifica como totalidade, surpreendendo formas persistentes da experiência portuguesa que permaneceriam privadas de significado sem essa aproximação.
Referi acima o privilégio exorbitante que é tomar a História recente portuguesa como matéria de reflexão artística. Parte desse privilégio decorre da própria natureza dessa História e das singularidades talvez irrepetíveis, decerto enigmáticas, que a repletem. Refiro-me à História de um povo que, apesar de ter detido até 1974 o maior império territorial herdado da Idade Moderna, cometeu o feito, até aí inédito na História universal, de emigrar em massa para outro lado — no caso, os grandes centros urbanos europeus e americanos; à história de um estado que conduziu improvavelmente a mais longa guerra travada por um país europeu no século XX; de um país cujo principal fenómeno de massa na época democrática é o da falência da saúde mental e da corrida aos psiquiatras e aos psicotrópicos; de um país que ostenta o orgulhoso galardão de ter sido o primeiro a abolir a escravatura, mas que, quando se observa de perto a sua democracia e o modo como toda a experiência do homem democrático se condensa na figura quotidiana do desespero, quando se pondera a indigência completa dos seus objectivos, o ponto a que o mundo o deixou de interessar e o modo como já só se satisfaz nas suas recriações (o desporto, a televisão, a pornografia), o ponto a que é já incapaz de se reconhecer nesse estado iníquo que, por vezes, lhe vem pedir a esmola de um voto; e ainda mais quando sobre ele impende a acusação diária de uma dívida que não contraiu e que os filhos que terá em vão se esforçarão por pagar; e quando, em suma, o rebaixamento da vida colectiva desceu ao seu ponto mais vil e abjecto — é impossível não sermos sacudidos pela noção de que a escravatura não foi abolida, mas apenas generalizada, e de que cada português foi derrotado numa guerra que não se lembra de ter combatido e, como em todas as guerras, feito escravo e posto a trabalhar.
Este tipo de intuições, não apesar, mas precisamente porque emanam de uma certa intempestividade do presente, não podem ser deixadas à porta de qualquer esforço interpretativo. Introduzem, por outro lado, uma nova exigência nas categorias com que pretendemos recolher a realidade: a da intromissão do presente. O seu primeiro dever é sempre o de não trair o presente em que se enraizam as nossas perplexidades, o insuportável que nos faz falar.
5. No que acabo de afirmar, o leitor paciente terá talvez pressentido pelo menos uma implicação que, por meu lado, não tenho razões para deixar na sombra: a de que entre o Estado Novo e a normalidade democrática, por exemplo, não existe diferença substancial. Procedo de imediato ao preenchimento desse espaço em branco, aprofundando a categoria já referida: a do segredo. Por ela se avaliará a preocupação transversal do nosso trabalho interpretativo.
Associamos a clandestinidade a certa contingência exclusiva da resistência ao Estado Novo. Porém, a clandestinidade é a própria regra do totalitarismo. Toda a lógica totalitária pressupõe ou venera a clandestinidade. Também a polícia política, do ponto de vista fenomenológico, é clandestina. Pode estar em qualquer lado — prisões, esquinas, redutos inacessíveis, mesmo na casa ao lado, até na família — mas sem se apresentar na sua condição. A clandestinidade, na experiência totalitária, espalha-se a todo o tecido social: o pária, o louco, o mendigo e o homossexual, mais tarde o desertor e o emigrante, são também depositários dessa clandestinidade portátil; por fim, qualquer indivíduo se torna clandestino a si mesmo; também ele, na esfera relacional, traduz a clandestinidade e a exclusão sob a forma de comportamento: ao resultado disto chama-se brandos costumes, respeito e humildade ou, para chamar as coisas pelo nome: culpa. Nisto se revela, não apenas de que modo a realidade totalitária está afectada integralmente à lógica da clandestinidade, mas, o que é mais interessante, o modo como a vida no regime totalitário confina de muito perto com a experiência arcaica do mistério ou, se quisermos, do segredo.
Vejamos agora de que modo esta categoria estabelece também a sua unidade significativa no presente da democracia — um presente que, por princípio, repudiaria apresentar-se como sua exemplificação. Com efeito, a democracia é o reino da justificação. Ao contrário do que ocorria no salazarismo, a democracia pressupõe a noção de “espaço público”, a evidência do que acontece e porquê. Mas a ordem das causas refinou-se a tal ponto — e o mistério continua a ser tão essencial à política — que a democracia teve de inventar a figura do especialista. O especialista, na sua mera existência, é a garantia de que há sempre alguém junto de quem as causas são perceptíveis — o que basta talvez a sossegar os restantes. Mas como o especialista trabalha sempre no sentido de se tornar insubstituível, precisa ele de manter o carácter inviolável, e até exclusivo, da sua área de competência, a tal ponto que essa área, subtraindo-se à experiência comum e ao regime da opinião, dependerá cada vez mais de um critério e de um acesso de natureza técnica. Por aqui se vê a que ponto a representatividade democrática é gradualmente limitada e restringida, tal como é ineficaz ou desqualificada a opinião que a fundamenta: porque proliferam, sobre o terreno da experiência comum, as áreas reservadas à técnica dos especialistas. Ora, este é o correlato na democracia da clandestinidade geral do salazarismo. Nesta forma de clandestinidade, o que em princípio corresponderia a uma área comum de experiência política, como a economia, torna-se um domínio vedado a quem não possua a competência correspondente. Estamos, assim, de novo, em pleno vigor do mistério. É para manter o mistério — isto é, para manter o efeito sem que nele transpareça a causa — que os “especialistas” da economia a descrevem hoje com o mesmo tipo de linguagem anteriormente usada para descrever a natureza. Descreve-se a “crise” como se fala dos flagelos naturais incondicionados; dos mercados e da indexação de taxas financeiras como se tivessem caído, não de mãos humanas, mas do céu, como os meteoros.
A manutenção do mistério económico com apoio numa linguagem extraída da experiência natural é possível por uma razão surpreendente: porque a própria natureza, na chamada sociedade democrática, se tornou ainda mais enigmática e, inclusivamente, o que de mais oculto habita agora a experiência humana. A prova disso é o entusiasmo com que a democracia acolhe tudo aquilo em que gosta de detectar um grau de enigma; o modo como ela, indefesa perante o oculto, se apressa a tomar-se de pânico na iminência de epidemias, vírus, catástrofes higiénicas ou naturais — que ela própria inventa porque secretamente as anseia —, a morte nas suas várias declinações, desde os acidentes na estrada até aos crimes passionais. A natureza é o pânico porque, na experiência democrática, é a única forma em que se tornou possível viver uma noção de destino. No totalitarismo, o destino é sempre político. É essa a característica última da miséria e desolação salazarista: o da política transformada em figura da fatalidade. Mas nisso havia ainda, pelo menos, uma evidência do político. Na miséria e desolação democrática, o político exilou-se na natureza e na morte. E os que se congratulam com a laicização do Estado na democracia, deveriam antes temer esse jugo, mais potente e letal que o do catolicismo salazarista, que se apoderou hoje do homem democrático: a nova religião ainda mais intoxicante dos telejornais e da televisão, da publicidade, dos empréstimos bancários e do sistema educativo, toda ela consagrada à ameaça e à inevitabilidade de um destino cuja antecipação é sempre catastrófica e perante o qual, a todo o momento, se faz o triste espectáculo da salvação e da felicidade.
6. Após o exemplo, uma fábula, com que termino.
Do mês de Abril, é costume recordar duas datas: o dia 1 e o dia 25. A ambas as datas já só acodem incertas pontualidades festivas. Festivo era, por exemplo, o modo como os jornais e telejornais suspendiam no dia 1 o seu dever de informar e enganavam o público com risonhas falsidades. Agora que, com o mesmo sentido festivo, não se limitam a essa data, é de presumir que ela tenha perdido sentido e que não haja razão para circunscrever a comemoração a um dia particular do calendário. O dia 25 também terá perdido o seu sentido, mas não porque, por assim dizer, se tenha dissolvido nas datas circundantes: bem pelo contrário. A esperança e furor de que se reclamou originalmente quiseram alguma vez contaminar todas as outras folhas do calendário. Mas, ao contrário do dia das mentiras, em vez de expandir-se, contraiu-se. Hoje é muito claro que o dia da liberdade é um só. É a própria das efemérides: o seu limite é a meia-noite e o virar do calendário.
Que os significados iniciais destas duas datas não tenham permanecido intactos só pode ser interpretado num sentido: a comunidade que se reconhecia neles encontra-se agora sob o efeito de uma poderosa amnésia. Imaginemos (sempre no modo da fábula), as consequências desta perda de memória. Com o tempo, conservar-se-á o essencial — que, em Abril, havia duas datas — mas tornar-se-á impossível saber o que atribuir a uma e outra. Em certa medida, ambas se confundirão. Saber-se-á que foi em Abril, e até se terá uma ideia do que aconteceu, mas sem se saber exactamente o quê nem quando. O mais certo é que as datas venham a ser trocadas; e chegar-se-á, por fim, ao ponto de concluir que a revolução aconteceu precisamente no dia das mentiras, enquanto que, por via desta inversão, no dia no 25, todos — operários e patrões, especuladores e vítimas da usura (não tenho uma imaginação tão rica que me permita distinguir outras categorias sociais) — se sentirão predispostos a pregar uma partida ou a contarem a sua mentira. Nesta fábula, devemos ver aquele elemento de ironia a que toda a história colectiva paga o seu tributo: é que, de facto, se a comunidade perdeu a memória, então, seja qual for a data em que a revolução ocorreu, ela não pode ter sido outra que o dia das mentiras.
Francisco Luís Parreira
Em tudo quanto fazemos, estamos sempre a contar a nossa história pessoal, porque ninguém conta nada a ninguém sem recurso às emoções, e só as emoções vividas são emoções comunicáveis. Aprendi com Manuela de Freitas, João Mota, Gutkin e Listopad que toda a música é também teatro. Toda a música é ao vivo, é presencial mesmo quando gravada – porque só existe música quando alguém a ouve. Como só há teatro quando alguém o presencia. Não há arte sem partilha, não há obra de arte sem co-criação.
A distância entre as idades destes actores e actrizes e a minha, com a idade do Miguel Seabra mais ou menos a meio dessa distância, trouxe diferentes histórias pessoais para a história que se quer contar. Nos sons e nas músicas – como nas cenas – potencia-se a partilha por meio da estilização e da metáfora. Com a recusa radical do naturalismo e dos clichés.
A música é uma forma de sonoplastia, uma escultura de sons e silêncios. No teatro ela tem de fazer parte da carne dos actores, como tudo o resto. E o mais difícil é gerir o silêncio – como quis mostrar John Cage, em 1952, com o escândalo da obra “4’33” feita apenas de silêncio – porque, como disse um Mestre, “a inspiração é uma dama caprichosa que só entra em casa bem arrumada”.
Arrumar a casa é dispôr-se a enfrentar o silêncio, a página em branco, o vazio e a totalidade do actor que se entrega. Na música, o compositor é aquele que ouve a música antes dos outros. Toda a música é possível, todos os sons estão disponíveis no infinito catálogo. Quando foi gravado o álbum “Cantigas do Maio” de José Afonso, em 1971 nos arredores de Paris, o editor perguntou-me “Porque é que você me leva o mesmo preço por todos os arranjos? Há uns que quase só têm a voz do cantor… Não deviam ser mais baratos?”. Respondi-lhe: “Está enganado, deviam ser mais caros. Você não me paga pelos instrumentos que eu ponho. Paga-me pelos que eu tiro. Porque, à partida, todos eles estão disponíveis na minha cabeça.” Toda a expressão está disponível no vazio, porque o nada é, em essência, a disponibilidade de tudo; só se realiza a expressão por meio dos significados. É isso que condena ao fracasso o grande embuste – estético, técnico e ético – que é o pós-modernismo, o embuste da oposição entre forma e conteúdo, uma vez que toda a forma é significado e, consequentemente, compromisso.
O método de trabalho de Miguel Seabra com estes actores e actrizes consistiu em conquistar esse vazio prenhe de toda a criação. Limpar, tentar conhecer todas as células do corpo, todas as imagens das emoções, todos os milissegundos do tempo e da luz. Quando, no início dos anos 1970, se fez um inquérito sociológico junto de emigrantes portugueses na região de Paris, contaram-me a história de um sexagenário que vivia numa barraca do bidonville de Saint-Denis; trabalhava 12h por dia na Citroen, na outra ponta da cidade, de inverno saía de noite e voltava de noite. A sua barraca ficava junto ao local onde todo o bairro francês contíguo despejava o lixo. Quando chegava a casa extenuado tinha de pegar numa pá das obras – que deixava do lado de fora da barraca – e abrir caminho por entre a montanha de lixo para poder abrir a porta e entrar em casa.
O sistema em que vivemos asfixia-nos com estímulos, cada vez mais frequentes e intensos, mas cada vez mais pobres e empobrecedores, cada vez mais iguais uns aos outros. Para conseguirmos “entrar em casa” temos de varrer toneladas de lixo. Só assim se cria espaço para o silêncio, para as emoções, para as vastas paisagens da alma. É gratificante trabalhar com estes actores, este encenador, esta equipa. Porque, aqui, não se ocupa o espaço comunitário, que o palco é, com clichés e irrelevâncias - sabe-se que tem de haver uma grande razão. A música e os sons são parte dessa busca radical.
José Mário Branco
Folha de Papel
Quando se rasga uma folha de papel ao meio, o que fica são duas partes do mesmo papel e um espaço vazio no meio. Este espaço vazio, no entanto, desenha-se mais do que um intervalo, surge como o “espaço entre” duas coisas. O acto de rasgar o papel é responsável pela separação entre as duas partes, que se analisarmos bem acabam por não ser muito diferentes entre si, uma vez que, sendo parte de um todo, transportam a mesma densidade e logo a mesma identidade. Mas a forma como se apresentam é diferente. Se esta folha fosse um país, Portugal poderia ser um dos perfis da metáfora associada à ideia de transformação pelo corte ou pelo rasgo com um regime instituído. A divisão de dois períodos da História separados por um impulso de decisão consciente. Este rasgão, este vazio, este nada que se abre, este “espaço entre” transporta em si tudo o que não é feito da matéria das outras duas partes. Sítio onde se experimenta uma espécie de apneia, onde finalmente se respira sem consequência uma promessa de utopia, uma ideologia do ser e do estar que se fundamenta no sonho, ou vir à tona depois de toda uma existência debaixo de água. Este buraco vazio acolhe em si tudo o que se permite ao homem acreditar e por momentos constrói o espaço que de entre todos só a arte pode propor, longe do que é real.
A experiência da liberdade trás a consciência da insatisfação e a revelação da vontade e do desejo.
O tempo pára, fica suspenso, e o corpo também, pois a própria gravidade experimenta a liberdade de simplesmente não se exercer.
Mas não pode durar muito tempo, dura apenas o tempo de uma respiração, de um salto em comprimento e quando voltamos a pisar o chão percebemos que tudo voltou a mudar, que alguém já organizou as coisas enquanto estivemos a gravitar, que já estamos de novo num comboio para outro sítio, ou estamos de volta às mesmas águas. A pausa acabou, o tempo acabou. Agora, para nosso bem, as coisas estão de volta aos eixos, e não precisamos de nos preocupar mais com a ideia de liberdade porque alguém já está a fazer isso por nós. Sem percebermos ainda o que nos aconteceu e sem tempo suficiente para aprendermos no corpo e na alma o que é viver em liberdade, já pertencemos a algo maior que nos há-de guiar à vitória.
MANIPULAÇÃO
A metáfora da folha de papel mostra também que nem tudo está nas mãos do homem, é difícil prever todas as variantes que estão envolvidas quando rasgamos uma folha de papel, mas podemos sempre manipular o acontecimento com o tipo de papel, a forma como se rasga, a velocidade do gesto, etc. A presença de manipulação foi um traço que se revelou constante no estudo destes períodos da história de Portugal. Parece haver sempre uma mão de seres, erguida, que manipula os cordéis da vivência quotidiana. Quando, força maior, paixão, ideologia, sonho, cansaço, medo, fome ou rendição essa mão de gente cai, logo aparece uma outra que mais fechada por oposição começa lentamente a elevar-se em escala e a instalar a mesma marioneta de manipulações.
A ESPERA
Há qualquer coisa de antropológico nesta coisa da espera. Entre o inevitável e o imprevisível não há diferença. Por um lado eu sei que algo vai acontecer, portanto não estamos a falar do acaso ou do imprevisto, por outro, como eu já aceitei o que há-de vir, não vou investir em algo que possa evitá-lo, mais, se eu já estiver à espera de algo, nunca sou apanhado desprevenido, portanto espero. Fico calmamente à espera, a respirar uma qualquer brisa salgada, numa vanada onde se pede um desejo e se despede um beijo. O destino e o fado sofrem de aceitação imediata e o optimismo pagão ainda agradece o trágico, por este não ter sido pior. E à espera nos sentamos. À espera do comboio, à espera que o tempo passe, à espera que alguém faça qualquer coisa, à espera de uma revolução, à espera que alguém dê as ordens, à espera de quem parte, de quem chega, da senha B, à espera que a mosca poise, à espera do inevitável, à espera que Deus exista, que a Selecção ganhe, que o céu não nos caia em cima da cabeça, que amanhã não chova, que alguém caia da cadeira, que haja uma nova revolução.
PORTUGAL VISTO DE CIMA
Quem vier do outro lado do mundo a andar, chega aqui e tem de parar. A terra acaba.
Quem vier do outro lado do mundo a correr chega aqui, pára, e espera. Aqui o tempo é ainda diferente, tem que parar. Parar hoje em dia é tão precioso, que eu digo valha-nos esta margem boa!
Ao afastar o olhar do meu país, olhando das nuvens, para assim o conseguir ver, encontrei um grande cais, um ancoradouro de onde se parte e se chega e nos entretantos se espera. No espaço entre duas chegadas e duas partidas está o nosso espaço de ser, o nosso “espaço entre”. O espaço entre o resto do mundo e o mar, este é o nosso território de existência, é este o espaço que temos para acontecer, assim como no palco criamos um espaço limitado entre o público e o mundo que carregamos às costas. Criamos uma beira mar que é também uma beira terra.
Poder-se-ia descrever como pedaço de terra que se habita entre o resto do mundo e o resto do mar.
Um intervalo entre dois restos, duas imensidões, um “espaço entre”. Portugal é também um porto de abrigo meigo e generoso, um tapete comprido onde se pode ler BEM VINDO em várias línguas, que bem vê quem vem, e bem quer a quem vai.
Ao fundo o mundo ou Portugal país suspenso, amordaçado, pendurado, silenciado, manipulado. Estagnado e sob tensão faz o que pode. Balança-se com alguma brisa, acolhe as marés. Protege e vê partir toda a gente. Edifica a ordem, mostra-se imperial, oponente, com escala, representa a fachada da boa forma, saúde e bem-estar. Eleva-se em muro, em muralha que de todas a edificações é a que a história viu mais ligada ao poder e à fé. Mas depressa se desmorona, vai à ruína e se desfaz como castelo de areia. Tal como um povo, um país também rebenta, também diz não, também desiste e emigra e depois volta a erguer-se, a levantar-se e a reconstruir-se de novo.
TRAJES DE SOMBRA
E os caminhos abrem-se deixando passar as sombras das figuras que se movem aos poucos, sempre pelos mesmos pisos, sempre com os mesmos sapatos. Mas os tempos mudam, mesmo quando não queremos e os sapatos já são outros e os casacos, as gabardines e os chapéus de palha. Mas os corpos permanecem corpos, e os xailes e as mantas que os cobrem ainda se mantêm do mesmo tamanho e forma, são traços de uma identidade que se encosta a ver os tempos passar.
Os figurinos surgem assim como silhuetas que animam a paisagem. Se um homem se aproxima ao longe, posso não saber quem é mas sei que é cá dos nossos, porque a sua silhueta transporta a identidade física do seu povo. A procura desta identidade assenta na conquista de uma simplicidade que afasta recortes de estilo do traje tradicional ou identificativo, apostando sim num fato base que seja capaz de atravessar todo o espectáculo como um risco grosso de carvão. Formas escuras de noite e de dia, que se transformam aos olhares da própria sombra, onde o que vemos às vezes mais não é do que o rasto que fica na memória da figura que passou.
CHAO GENTIL DE PEDRA DURA
Pelas mãos calejadas, ou pelas mãos retornadas a casa e pelas gentes que ainda foram ficando se remonta um país, como na cena. A vida volta-se a montar devagar, pronta para acontecer como todos os dias, como pela primeira vez só que de novo, uma outra vez. E tudo se transforma mais uma vez e o espaço volta a mudar, e as pessoas voltam a voltar, e as coisas têm agora outras formas e outras cores mas são as mesmas por dentro. A base é feita da mesma areia, o chão que se pisa e esmigalha é sempre o mesmo. A base das calçadas, das escamas de peixes antigos que permanecem debaixo dos nossos pés, das peugadas de todos aqueles que já partiram, lâminas de xistos e ardósias estilhaçadas. O chão não tem descanso, um dia é monte de ir com gado, outro é praça de montar praça, ou estrada para barricar, ou largo de fazer greve, ou terreiro de revolucionar. Não tem poisio este piso, vive de ser tomado, chão testemunha do medo e do frio, da fome e do silêncio, cúmplice do segredo, onde se desenha o jogo da macaca, ou se salta ao pé-coxinho. Chão de calcar com botas de marcha, ou de ser pisado feito lagar, chão de cantar o fado, de ir rezar, de votar, de falar com um candeeiro na rua. Chão de beijar em forma de agradecer à vida a história que temos para contar.
Marta Carreiras
Lógicas de Criação do Espectáculo
Uma das linhas de trabalho que tem marcado o percurso do Teatro Meridional desde a sua formação em 1992 tem sido a produção de um conjunto de espectáculos em que a escrita cénica não tem na palavra o seu principal suporte. “Ki Fatxiamu Noi Kui” (1972), que inaugura o Teatro Meridional na sua formação inicial e na sua primeira produção, cria esta linha de trabalho, tornada depois sequente em 1993, com “Cloun Dei”, “Cloun Crioulus Dei” em 1999, “Histórias 100 Tempo” em 2001, “ Para Além do Tejo” em 2004, “Por Detrás dos Montes” em 2006, “ Lisboa Invisível” em 2008, “VLCD! Do lugar onde estou já me fui embora” em 2008 e, finalmente, “1974” que estreia em Novembro de 2010 no Teatro Nacional D. Maria II em Lisboa.
Este conjunto de espectáculos tem tido como pontos de partida temáticas muito distintas que têm surgido da necessidade interna da Companhia em questionar paradigmas de natureza diversa: sociais, existenciais, identitários e universais. A construção deste tipo de espectáculos exige um permanente questionamento sobre as linguagens comunicacionais do actor, o preenchimento dos espaços do vazio entre o palco e a plateia e a escolha de signos que os corpos escrevem e inscrevem na cena. Procura-se problematizar, formal e continuamente, a inteligibilidade e a singularidade da escrita cénica.
As temáticas que estão na base de todos estes espectáculos, temáticas essas que nos colocamos a nós próprios ou que têm partido de desafios para a sua criação vinda de Parceiros Teatrais - CCB, Teatro Municipal S. Luiz, Teatro Nacional S. João, Teatro Municipal de Bragança e, agora, TNDM II - , têm abrangido sempre um universo profundamente amplo e susceptível de ser tratado de uma forma segmentada, elegendo uma realidade ou um eixo dramatúrgico significativo, inferindo a partir daí a dimensão de todo o universo temático. No entanto, tem sido sempre nossa opção incorrer no risco de expandir a sua abrangência, fixando-nos depois em momentos específicos onde detemos a acção. Utilizando uma metáfora cinematográfica, partimos sempre do plano geral e só aproximamos ao plano próximo e grande plano quando entendemos que a acção dramática ou que o trabalho encontrado na cena o justifica.
Todos estes espectáculos se iniciam naturalmente com uma pesquisa prévia ao inicio dos ensaios, pesquisa essa que é documental, literária, fotográfica, histórica, sonora e pictórica. Estabelecem-se também aprioristicamente alguns pressupostos do trabalho formal da cena e percebem-se quais as eventuais disciplinas de trabalho que o processo de ensaios deve conter.
Escolhem-se depois os criadores e definem-se os actores para a constituição do elenco. A selecção dos actores procura ser sempre profundamente cuidada, pois é a partir do questionamento da cena que o espectáculo se constrói. No caso particular do espectáculo “1974” procurámos, dado que o nosso universo é Portugal inteiro, que os actores reflectissem essa diversidade sendo os actores oriundos de vários lugares do país.
O processo de trabalho inicia-se normalmente com alguns encontros entre os diferentes criadores, entre um ano a seis meses antes de se dar inicio aos ensaios específicos para o espectáculo. Estes encontros têm como objectivo, aproximar linguagens e criar códigos cénicos e de trabalho comuns.
Definem-se ainda e previamente algumas directrizes de espectáculo; presença ou ausência de diacronia, personagens fixas ou actores desmultiplicados em várias personagens e os seus principais eixos narrativos.
No período dos ensaios e durante as primeiras semanas de trabalho, procura-se que os actores estabeleçam uma boa dinâmica de grupo e fiquem com códigos de trabalho, humanos e teatrais partilhados. É feito também um trabalho de visionamento dos materiais de pesquisa que vai encaminhando e clarificando as direcções de sentidos do espectáculo.
Parte-se depois para o trabalho de improvisação a partir de conceitos que se entenderam ser estruturantes do percurso narrativo. A criação e/ou as sugestões musicais e plásticas vão construindo conjuntamente uma teia plurisignificante, redimensionando permanentemente as cenas e criando o sentido global do discurso cénico. As cenas são depois depuradas e trabalhadas ao pormenor e ligadas entre si de forma a escreverem um texto cénico.
Todos estes trabalhos têm tido a particularidade de, ao existirem como discursos abertos, estarem sujeitos a sofrer alterações, inclusivamente durante o período de temporada e itinerância dos espectáculos. Após o trabalho estreado, todos os dias são ensaiadas algumas cenas, visando ajustes rítmicos, de intenção ou de marcação.
Nenhum destes espectáculos procurou ser antropológico, histórico ou testemunhal. É sempre um olhar subjectivado, construído por um colectivo de criadores e filtrado pela escolha da encenação.
“1974” parte de uma realidade objectiva e factual, em que a narrativa cénica obedece necessariamente a uma diacronia, pois o espectáculo foi sumariamente dividido em três grandes períodos de tempo da História de Portugal. No entanto, dentro de cada período, não houve a preocupação de que a narrativa cénica obedecesse a uma exacta e factual sequência temporal, tendo sido construída a partir de fragmentos e situações significativas, assumindo-se a dimensão de fábulas sucessivas, procuradas entre a poesia e o humor. Partindo de um universo temporal e histórico, não se pretenderam factos ilustrativos ou documentais, mas expressões emocionais e teatrais que nos remetessem a estados que possam aproximar o público da sua memória, ou criar uma memória em que não a viu nem viveu.
E procura-se sempre que aquilo que sugerimos na cena, seja um ancoradouro e também um cais e … um barco, que nos leve em viagem, mas que nos permita o regresso ao melhor lugar de nós.
Teatro Meridional
Teatro Meridional
O Teatro Meridional é uma Companhia portuguesa vocacionada para a itinerância que procura nas suas montagens um estilo marcado pelo despojamento cénico e pelo protagonismo do trabalho de interpretação do actor, fazendo da construção de cada objecto cénico uma aposta de pesquisa e experimentação.
As principais linhas de actuação artística do Teatro Meridional prendem-se com a encenação de textos originais (lançando o desafio a autores para arriscarem a escrita dramatúrgica), com a criação de novas dramaturgias baseadas em adaptações de textos não teatrais (com relevo para a ligação ao universo da lusofonia, procurando fazer da língua portuguesa um encontro com a sua própria história), com a encenação e adaptação de textos maiores da dramaturgia mundial, e com a criação de espectáculos onde a palavra não é a principal forma de comunicação cénica.
Realizou até à data 35 produções, tendo já apresentado os seus trabalhos em 17 países – Argentina, Bolívia, Brasil, Cabo Verde, Chile, Colômbia, Equador, Espanha EUA, França, Itália, Jordânia, Marrocos, México, Paraguai, Timor, Uruguai – para além de realizar uma itinerância anual por Portugal Continental e ilhas.
Desde 1992, ano da sua fundação, os trabalhos do Teatro Meridional já foram distinguidos 22 vezes a nível nacional e 7 a nível internacional, dos quais relevamos os seguintes: Prémio Acarte/Madalena Perdigão (Fundação Calouste Gulbenkian), 1992; Prémio Nacional da Crítica (Associação Portuguesa de Críticos de Teatro), 1994; Globo de Ouro para o melhor espectáculo de Teatro (SIC/Revista Caras), 2006; Prémio Nacional da Crítica (Associação Portuguesa de Críticos de Teatro), 2004; Prémio Revelação do Público (FESTLIP, Brasil), 2010; Prémio Europa Novas Realidades Teatrais, 2010.
Curricula
(criativos)
MIGUEL SEABRA (Direcção Artística do TM, Encenação e Desenho de Luz)
Lisboa, 1965. Licenciado em Teatro, Curso de Formação de Actores, pela Escola Superior de Teatro e Cinema. Em 1992, funda o Teatro Meridional, Companhia que dirige e que tem marcado o seu percurso artístico como Actor, Encenador, Designer de Luz, Formador e Produtor. Como actor, participou também nas séries de TV, “Pedro e Inês” (Realiz. João Cayatte - 2005) e “Equador” (Realiz. André Cerqueira - 2008), e no cinema nos filmes “Coitado do Jorge” (Realiz. Jorge Silva Melo - 1993), “Uma Cidade Qualquer” (Realiz. Joaquim Leitão – no âmbito de Lisboa Capital Europeia da Cultura 1994), “Logo Existo” (Realiz. Graça Castanheira - 2006) e “Singularidades de uma Rapariga Loura” (Realiz. Manoel Oliveira – 2009).
No TNDM II: “O Ano do Pensamento Mágico”, de Joan Didion.
JEAN PAUL BUCCHIERI (Assistência Artística)
Itália, 1967. Reside em Portugal desde 1993. Doutorando na Faculdade de Motricidade Humana, com uma bolsa de estudo da Fundação Ciência e Tecnologia. Faz parte do Corpo Docente da Escola Superior de Teatro e Cinema. É assessor de programação no Teatro Municipal de Almada. Colaborou com Bob Wilson - como assistente e intérprete - e releva as colaborações com Ana Luísa Guimarães, Jorge Listopad, Maria João Pires, Vadislav Paz, Joaquim Benite, Natália Luíza e Miguel Seabra. Enquanto intérprete, destaca o trabalho com Olga Roriz e Nuno Carinhas. Encenador e coreógrafo, apresenta regularmente projectos nas
áreas da dança e do teatro e tem também trabalhado como pedagogo convidado no país e no estrangeiro, enquanto desenvolve uma intensa investigação pedagógica sobre o trabalho do intérprete a partir do corpo. É a terceira vez que colabora com o Teatro Meridional.
FRANCISCO LUÍS PARREIRA (Dramaturgia)
Moita do Ribatejo, 1965. Licenciado em Filosofia, Pós-graduado em Ciências Diplomáticas, Mestrado em Ciências da Comunicação. Doutorando em Comunicação e Cultura pela Universidade Nova de Lisboa. Investigador associado do Centro de Estudos da Comunicação e Linguagem (UNL). Professor convidado no Mestrado de Teatro da ESAD-IPL. Autoria de “História do Escrivão Bartleby” (Artistas Unidos), “Tristão e o Aspecto da Flor” (teatromosca), “Lilith, Três Parábolas da Possessão” (ambas na Antena 2) e “O Dia de Todos os Pescadores” (Assédio/ TNSJ). Como co-autor, encenador ou actor, colaborou com as companhias Pogo Teatro, teatromosca, Assédio e Primeiros Sintomas. Publicou poesia e teatro, bem como diversos ensaios na área da filosofia, teoria do teatro e teoria da cultura. Traduziu para o palco ou edição, entre outros, Yeats, Beckett, Bernhard e Pinter. Tem desenvolvido actividade como guionista e crítico literário. É a terceira vez que colabora com o Teatro Meridional.
JOSÉ MÁRIO BRANCO (Música original e sonoplastia)
Porto, 1942. José Mário Branco é um dos autores – compositores - intérpretes que, na esteira de José Afonso, renovaram a canção portuguesa nos anos 60 e 70. Exilado em França entre 1963 e 1974, José Mário Branco funda aí a Cooperativa Cultural Groupe Organon. Em 1965, faz surgir o primeiro grupo de teatro amador português em França e dirige, igualmente, a primeira experiência de pré-animação cultural da Ville Nouvelle de Saint-Quentin-en-Yvelines. Foi também autor, compositor e intérprete da música de numerosas peças de teatro e filmes, em França e em Portugal. Regressado a Portugal, José Mário Branco fundou o GAC (Grupo de Acção Cultural) que, entre 1974 e 1977, realizou mais de 500 espectáculos em todo o país e no estrangeiro. Em 1977, integrou a Companhia Comuna Teatro de Pesquisa, onde permaneceu como músico e actor até 1979. Nesse mesmo ano, funda o Teatro do Mundo, onde exerce uma actividade preponderante. Apesar do interregno na gravação de discos seus, José Mário Branco nunca se afasta demasiado da canção. No ano de 1996, foi finalmente editada em CD toda a sua obra até àquele momento, incluindo gravações que há muito andavam dispersas ou fora do mercado. Paralelamente à sua actividade de autor, compositor e intérprete, assina várias produções discográficas nomeadamente para os discos de Camané, Amélia Muge e Canto Nono, assim como diversas bandas sonoras para peças de teatro e cinema.
MARTA CARREIRAS (Espaço Cénico e Figurinos)
Lisboa, 1975. Licenciada em Design de Cena, pela Escola Superior de Teatro e Cinema, pós-graduada em Estudos Teatrais pela Faculdade de Letras de Lisboa. Estreia-se profissionalmente, enquanto cenógrafa e figurinista, em 1997, com o Teatro Meridional, com quem desenvolve uma relação profissional de identidade criativa que dura até aos dias de hoje. Entretanto, tem trabalhado também com os criadores Ana Nave, Nuno Pino Custódio, Pedro Sena Nunes, Teatro Praga, Truta, Núria Mencia, Miguel Seabra e Natália Luiza.
No TNDM II: “A Visita”, de Abel Neves; “Loucos por Amor”, de Sam Shepard.
LEONOR CABRAL (Assistência de Encenação)
Lisboa, 1983. Licenciada em Teatro - Formação de Actores, pela Escola Superior de Teatro e Cinema. Completou a sua formação com workshops com António Fava, Ávila Costa, Giovanni Fusetti, John Mowat, Nuno Pino Custódio, entre outros. No teatro, trabalhou com José Peixoto, Elsa Valentim, Gina Tochetto, Rui Rebelo, Sofia Cabrita, Nuno Pino Custódio, Francisco Salgado, Carlos J. Pessoa, Joana Antunes, Sara do Vale. É a primeira vez que colabora com o Teatro Meridional.
SUSANA PAIVA (Fotografia)
Moçambique, 1970. Estudou Psicologia na Universidade de Coimbra. Trabalha profissionalmente como fotógrafa desde 1991, tendo trabalhado, sistematicamente, nas áreas da fotografia de espectáculo e fotojornalismo. Desde 2006 que desenvolve projectos pessoais na área documental, sendo o seu trabalho fotográfico distribuído internacionalmente pela agência austríaca Anzenberger. Em Janeiro de 2009, fundou o “The Portofolio Project”, plataforma educativa internacional na área da fotografia. É a segunda vez que colabora com o Teatro Meridional.
MARCO FONSECA (Assistente de cenografia)
Lamego, 1983. Licenciado em Design de Cena pela Escola Superior de Teatro e Cinema. No teatro, já colaborou com José Carlos Barros, Teresa Mota, Marta Carreiras e com a Companhia Comédias do Minho. Iniciou a sua actividade profissional em 2006 no Teatro Meridional, Companhia com a qual colabora desde então.
(actores)
CARLA GALVÃO
Lisboa, 1980. Tem o curso de actores da Escola Superior de Teatro e Cinema. Estreou-se profissionalmente em 1999 com a peça “Abril” (Teatroesfera). Tem colaborado como actriz em vários trabalhos dirigidos por João Lagarto, Maria Emília Correia, Madalena Vitorino, Francisco Luís Parreira, Gonçalo Amorim, Maria Gil, Tonan Quito, Luisa Pinto, e mantém um trabalho regular com as companhias Artistas Unidos, Teatro Meridional e Teatro dos Aloés, tendo trabalhado textos de autores como Anton Tchékhov, Athol Fugard, Bertolt Brecht, Enda Walsh, Jacques Prévert, José Luís Peixoto, Judith Herzberg, Pepetela e Sarah Kane. Foi nomeada para os Globos de Ouro na categoria de melhor actriz de teatro nos anos 2004 e 2007. No cinema, trabalhou com Solveig Nordlund, Luís Fonseca, Luis Alvarães, João Constâncio, Edgar Medina e Jeanne Waltz. Recebeu uma menção especial do Prémio Nacional da Crítica 2008 da Associação Portuguesa de Críticos de Teatro e o Prémio Bernardo Santareno 2009 - Actriz revelação. É a sexta vez que colabora com o Teatro Meridional.
No TNDM II: “Canção do Vale”, de Athol Fugard.
CLÁUDIA ANDRADE
Lisboa, 1979. Diplomada em Interpretação/Teatro do Gesto pela Escola Estudis de Teatre (Barcelona), desde 1993 que participa como actriz em diversos projectos com o Teatro da Cornucópia, Trigo Limpo teatro ACERT, Teatro do Morcego, Próxima Estação Associação Cultural, Théâtre de la Mezzanine, Companhia Jordi Bertrán e Quarto Período – O do Prazer. Trabalhou com Luis Miguel Cintra, António Fonseca, Christine Láurent, Pompeu José, José Rui Martins, Almeno Gonçalves, Adriano Luz, Peter Michael Dietz, Cláudio Hochman, Luís Assis, entre outros. Desenvolveu diversos projectos na área pedagógica e de intervenção comunitária, estando neste momento a terminar o mestrado em Teatro e Comunidade na Escola Superior de Teatro e Cinema. É a primeira vez que colabora com o Teatro Meridional.
DAVID PEREIRA BASTOS
Lisboa, 1978. Tem o curso de actores da Escola Superior de Teatro e Cinema. Inicia-se no CITAC, em Coimbra, onde trabalha com Bruno Schiappa, João Grosso, Carlos Curto, Teresa Faria. Em Lisboa, desde 2001, trabalhou com Nuno Pino Custódio, Filipe Crawford, Cláudio Hochman, Jorge Fraga, José Peixoto, João Brites, Mónica Calle, Ricardo Aibéo, Gonçalo Amorim e Jorge Silva Melo. Para a Casa Conveniente encena “como só agora reparo”, a partir de “Gaspar”, de Peter Handke, e “porque é que não estás contente?”, a partir d’ “A Gaivota”, de Tchékhov. Em cinema, trabalhou com João Constâncio, Manuel Pureza, Francisco Villa-Lobos e João Salaviza. É a primeira vez que colabora com o Teatro Meridional.
No TNDM II: “Rei Édipo”, de Sófocles; “Criadas Para Todo o Serviço”, de Goldoni.
EMANUEL ARADA
Lisboa, 1978. Tem o curso de actores da Escola Superior de Teatro e Cinema. Iniciou a sua experiência como actor em 1998 no Teatro do Gil, com Paula Vinagre, Francisco Luís Parreira e Paula Sousa. Em 2001, estreia-se como actor profissional e inicia uma colaboração regular na Companhia Teatroesfera onde é dirigido por Fernando Gomes, Paulo Oom, Almeno Gonçalves, Teresa Faria e João Ricardo. Colaborou também com os projectos Actus, Associação Tenda, Teatromosca, PROTO-Associação Teatro Observatório, Teatro Instável, Karnart, Companhia Teatral do Chiado e Teatro da Garagem. A sua actividade como actor inclui ainda participações especiais para televisão, teatro radiofónico e cinema, onde se estreia em 2006. É a primeira vez que colabora com o Teatro Meridional.
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